terça-feira, 4 de maio de 2010

Ortotanásia

Do grego orthos, correto, e thanatus, morte.

Entre os temas do meu interesse está a morte.

Não propriamente a Morte em si, mas o processo do morrer, de como este fenômeno tão normal e, tão certo em nossa trajetória no Planeta Terra, se dá. Quais são as suas variáveis e como nós nos relacionamos com um evento que, mais dia menos dia, acontecerá em nossas vidas.

Em criança, aos 08 anos de idade, presenciei a morte do meu avô Ernesto e até hoje, passados 52 anos, tenho a melhor lembrança desse fato.

Nunca tive medo da morte e achava estranho o pavor apresentado pelas pessoas à simples menção dessa palavra. Isto provocou uma curiosidade em mim que me levou, na idade madura, a buscar conhecer melhor o assunto para entender porquê as pessoas reagem tão mal ao fenômeno da morte. Quais são as suas motivações internas e externas para negar um fato que nos alcançará a todos.

Meu avô materno Ernesto, daí o nome da minha mãe: Ernestina. Porque era costume antigamente uma das filhas ter o nome do pai passando-se o substantivo para o feminino, era uma pessoa iluminada. Culto, calmo, bem humorado, afável, bom pai, bom avô, bom amigo, e de uma bondade infinita para com todas as pessoas. Nunca dizia a palavra NÃO a ninguém, sempre dava um jeito de ajudar as pessoas, fossem da família ou não, da vizinhança ou até da cidade – já que Itambé era uma cidadezinha do interior bem pequena em meados do século XX – quando nasci -, como é até hoje.

Pois bem, o “velho” Ernesto viveu até os 98 anos e tinha uma saúde invejável. Jamais havia se consultado com um médico ou tomado qualquer medicamento. Tinha um grupo seleto de amigos, entre os quais o Dr. Auterives Maciel – um dos dois únicos médicos da cidade.

Este grupo de amigos se encontravam diariamente na “Venda” (uma espécie de Armazém menor), localizado num dos boxes do Mercado Municipal de Itambé, de propriedade de um deles – o Sr. Gracelino. O objetivo dessa reunião diária, sempre às 11:00h na Venda do Sr. Gracelino era para bater papo e tomar cachaça num copinho pequeno que ainda hoje existe e que marca exatamente um “gole” – uma “dose”; diziam eles que era “para abrir o apetite” e no final dessa reunião, por volta das 11;45h iam cada um para a sua casa. Almoçava e se deitava para a “sesta” que eles chamavam de “tirar um cochilo” – coisa de no máximo, 01 hora. Até hoje eu cultivo esse hábito aprendido do meu avô e todos os dias depois do almoço eu “tiro o meu cochilo” e se não fizer isto, passo a tarde indisposta e mal-humorada.

As pessoas daquela época gozavam de muito boa saúde. Creio que era devido à qualidade de vida: Dormia-se cedo e acordava-se com o cantar do galo para ir ao curral ordenhar as vacas – muitas e muitas vezes tomei canecas de leite quentinho, ali mesmo no curral, sem fervura, acabado de ser extraído das tetas das vacas – a alimentação era constituída de frutas, verduras e legumes produzidas ali mesmo. Uma parte ficava para a família e o excedente era vendido na feira: uns compravam dos outros o que não produzira; consumia-se pouca carne – dos animais criados ali mesmo no pasto.

Como automóvel, leia-se Jeep Willys, era coisa que pouca gente possuía e não havia transporte coletivo, caminhava-se muito, o que contribuía sobremaneira para a realização de exercícios aeróbicos – imagine percorrer diariamente 04, 05 léguas (cada légua tem 06 km) para ir à roça pela manhã e outras 04 ou 05 à tarde para voltar à cidade, respirando ar puro. E ainda trabalhar o dia inteiro! É uma grande contribuição à saúde.

Essas léguas eram percorridas em estrada de terra, num estreito caminho entre as cercas que marcavam os limites das fazendas, cuja largura permitia apenas o trânsito de um carro de boi ou de um Jeep – se viesse outro em sentido contrário, tinha-se que ambos diminuir a marcha e manobrar para bem perto da cerca a fim de um permitir a passagem do outro sem provocar um arranhão no veículo contrário.


Àquela época nós morávamos numa casa construída numa porção de terra que ficava numa das margens do Rio Verruga, hoje denominada Sitio São Jorge; no lado oposto já era a cidade. Separando esta porção de terra da cidade havia uma ponte de madeira, algumas vezes as tábuas da ponte se quebravam quando os Jeeps a atravessavam carregando muito peso, proveniente das colheitas nas roças ou da carne dos animais abatidos e ficava dias e dias sem serem repostas, sendo muito perigoso atravessar a pé a ponte e ocorrer um acidente.

Este fato jamais impediu o meu avô de ir diariamente à cidade, ao mercado e à Venda do Sr. Gracelino: se faltava uma tábua de madeira da ponte e era difícil atravessá-la em pé, ele se ajoelhava e vencia o obstáculo engatinhando.

Em épocas de aulas eu ia para a Escola pela manhã e às 11:30h quando terminavam as aulas eu passava pelo mercado, me encontrava na Venda com o meu avô e voltávamos para casa lá pelas 11:45h. Ele me esperava todos os dias.

Um dia, ele não se levantou cedo, não foi ordenhar as vacas e nem veio tomar o café da manhã. Eu já me encontrava arrumada para ir à escola. Fui no seu quarto e perguntei: “Vovô você não vem tomar café hoje?” Ele disse-me: “Não, minha neta. Hoje estou cansado”. Fui na cozinha e relatei este diálogo para a minha mãe. Ela disse-me, “Vá para a escola, que eu vou ver o meu pai. Não se preocupe”.

Fui para a escola e, como toda criança de 08 anos, me envolvi com as aulas, com as brincadeiras do recreio e não pensei mais no assunto. Às 11:30, saí do Prédio Escolar (não tinha o nome de Colégio, isto era coisa chique da cidade vizinha Vitória da Conquista que tinha o Colégio Normal Diocesano) e fui ao mercado. Ao chegar na Venda do Sr. Gracelino, os amigos do meu avô me perguntaram: “Menina, por quê Ernesto não veio hoje?” Fiquei confusa, pois era a primeira vez que o meu vovô não me esperava, informei que não sabia o motivo, mas que pela manhã ele havia dito que se encontrava cansado e não tinha se levantado. Fui para casa.

Ao chegar, fui direto ao quarto do vovô, ele estava deitado quieto. Acerquei-me da cama e falei; “Vovô, porque você não foi me esperar na Venda do Sr. Gracelino? Seus amigos perguntaram por você e eu não soube dizer porque você não foi hoje lá.” Ele me disse: “Vá se trocar para almoçar. E eu perguntei: “Você não vem?”Ele respondeu: “Não. Estou cansado“.

Fui para o meu quarto, me troquei e ao chegar na sala para almoçar, comentei com a minha mãe sobre essa “novidade” do vovô. Ela me disse que ele estava idoso, que havia trabalhado muito a vida inteira e que era natural que quisesse ficar um pouco mais na cama para descansar. Mais tarde ela levaria o almoço dele.

Almocei, mas sempre preocupada como o vovô, fui para o seu quarto e me deitei juntinho dele para fazer a sesta ali; ele me pediu que tivesse cuidado com os pés para não chutá-lo. Acomodei-me, meio encolhida nos pés da cama e vi quando, mais ou menos, meia hora depois minha mãe chegou com um prato na mão, colocou em cima de um banquinho e tentava recostar o vovô com travesseiros, mas ele era muito alto e pesado e minha mãe encontrava dificuldade de efetuar sozinha a manobra sem machucá-lo. Ele não reclamava de dores. Só dizia: “Me deixe descansar, minha filha” e ela redargüia “Meu pai, o senhor precisa se alimentar um pouco. Não comeu nada hoje” e ele respondia: “Me deixe, menina. Estou cansado”. Esse diálogo durou bem uns 10 minutos, minha mãe tentava convencê-lo a se alimentar e ele obstinadamente dizia que não queria, que estava cansado.

De repente vovô parou de falar e o seu corpo ficou desgovernado; não coordenava mais os seus movimentos. Minha mãe gritou para mim; “Corra. Vá à casa do Dr. Auterives e peça-lhe para vir ver o meu pai”.

Saí correndo, pelo caminho de terra, atravessei aponte de madeira sobre o Rio Verruga, continuei pela lateral do mercado, atravessei a Praça da Bandeira, cheguei na casa do médico e comecei a chamá-lo aos berros, ele estava fazendo a sesta, acordou aborrecido, chegou na janela do sobrado e perguntou que gritaria era aquela. Quando eu contei sobre o vovô, ele desceu vestindo a camisa entrou no Jeep, ordenou que eu entrasse também e rumou para a nossa casa.

Quando chegamos, ele entrou no quarto, minha mãe estava sentada na cama com a cabeça do vovô no colo e eu fui providenciar a toalha e a bacia com água para o médico lavar as mãos após a consulta, como era costume naquela época, pois não havia nem água encanada , quanto mais banheiro, pia, etc. Ao voltar ao quarto, ainda tive tempo de ouvi-lo dizer à minha mãe: “Mas Ernesto não foi tomar a pinga conosco hoje e agora morreu antes que eu chegasse. Nem esperou para dizer adeus. Mas não se preocupe, Ernestina, ele não sofreu; não teve doença nenhuma. Morreu de velhice mesmo”. Fiquei ali, parada, com a bacia e a toalha nas mãos. Minha mãe chorava baixinho, e o vovô parecia que estava dormindo.

O médico pegou a bacia e o sabonete. Lavou as mãos. Enxugou. Pegou a maleta e disse: “Venha comigo no Jeep”. Obedeci sem saber porquê. Já na sua casa, ele chamou a esposa – D. Sibéria – deu a notícia e entrou no consultório. Ela veio até onde eu estava, me pegou pela mão, me pôs sentada numa cadeira e chamou “Mulata” – a empregada – pediu um copo de água com açúcar, me fez beber e disse-me: “Não fique triste. O vovô foi para o céu. Você vai sentir saudade por uns dias. Depois se acostuma e passa. Sua mãe vai sofrer mais um pouco. Cuide dela.”

Nesse instante amadureci muitos anos, pois ainda uma criança de 08 anos, vi morrer o meu avô a figura masculina que era o meu referencial, já que o meu pai não vivia conosco, e tomei consciência de que agora éramos só nós duas, a minha mãe e eu, e que eu tinha de cuidar dela que estava fragilizada. Não chorava, mas sentia uma tristeza imensa por pensar nunca mais veria o vovô, ao mesmo tempo ficava conformada por saber que ele ia pra o céu e que ficaria bem, mas também começava a pensar como fazer para ajudar a minha mãe nesse momento de tristeza.

O Dr. Auterives me deu um papel e disse que entregasse a minha mãe, que era para o sepultamento do vovô. Era o atestado de óbito. Saí e quando cheguei em casa já havia muitas pessoas, parentes, amigos, vizinhos. O vovô já tinha sido banhado e barbeado e puseram a melhor roupa que ele tinha. Estava na sala de visitas sobre a sua cama para o velório. O caixão estava sendo confeccionado e chegaria mais tarde – naquela época não havia funerária na cidade e quem confeccionou o caixão foi o tio José (um dos filhos), que era marceneiro.

Entreguei o Atestado de Óbito à minha mãe, dei o recado do Doutor Auterives e de D. Sibéria que haviam mandado dizer que viriam mais tarde para o velório. A partir daí me sentei na sala e, mais tarde, no terreiro, onde à noite foi acesa uma fogueira e passei a prestar atenção nas conversas dos adultos.

Todos chegavam na sala, iam perto da cama, olhavam para o vovô faziam o sinal da cruz, oravam um pouco e depois iam se juntar aos demais, numa conversação que, se não era alegre, também não era triste. Os assuntos giravam sempre em torno da figura do vovô e da sua bondade, da sua afabilidade, do seu bom humor, das suas piadas e riam repetindo a forma como ele as contava. Muito tarde da noite – não me lembro a hora – dormi - e acordei pela manhã, com a minha mãe me chamando para tomar café. Disse-me que eu não ia para a escola naquele dia. Dei-me conta novamente da morte do vovô.

Por volta das 11:00 hs, havia muitas pessoas na casa e no terreiro. Chegou “Quelé” o fotógrafo da cidade para fazer a última foto do vovô. Foi feita uma foto dele sozinho no caixão e outra com os familiares – minha mãe, minhas tias Hosana e Teodolina e os meus tios José e João. Os primos e as primas. Eu não quis ir. Um dia destes – coisa de uns dois anos atrás, mexendo num baú de coisas da minha mãe, vi lá a foto do vovô com toda a família, menos eu.

Na hora em que foram levar o caixão para o cemitério, minha mãe não me deixou ir e eu fiquei sem entender porquê. Mas uma coisa me marcou; eram 11:30h – a hora em que eu saía da escola e ia encontrá-lo na Venda do Sr. Gracelino para ir para casa almoçar e, alegremente, contava-lhe como fora o meu dia; as conversas com as colegas de sala de aula, as amigas, os recados da professora... Então eu pensei como vai ser agora? A quem vou contar as novidades?

Alguns dias se passaram e eu voltei à escola. A rotina estava diferente. Não tinha mais o vovô para me esperar na Venda do Sr Gracelino e me ajudar a atravessar a ponte.

Um dia, não agüentei a saudade e fui ao cemitério para ver ode estava enterrado o meu avô. Lá, no seu túmulo simples, sem lápide, só uma cruz com o seu nome pintado de preto, uma estrela pintada antes da data do nascimento e uma cruz antes da data da morte. Sentei-me e contei-lhe dos meus dias sem a sua presença, da falta que me fazia e da alegria de saber que ele era um homem muito bom, como todos os amigos falaram no velório e que estava no céu com Jesus, como dissera a D. Sibéria. E que, lá na casa de Deus os anjos tocavam flauta doce para ele não sentir saudade de nós e não ficar triste, como a gente estava aqui.

Fui para casa. Não contei a minha mãe o que fizera para ela não chorar, mas escrevi num caderno e agora, muitos anos depois, transcrevo aqui.

Ao que lembre, a tristeza passou até um pouco rápido, ficou a saudade, que perdura até hoje e uma lembrança carinhosa de uma pessoa que marcou profundamente a minha vida. Que me ensinou a viver olhando a vida com os olhos da bondade, do amor ao próximo e a ver a morte como um fenômeno natural.

Foi através do exemplo de vida do meu vovô querido que nunca me assustei com a possibilidade de morrer e sempre considerei a vida, com todas as dificuldades que passei e que, ainda passo, um presente de Deus.

É por causa dele que amo tanto os idosos e me dou tão bem com eles.

Foi presenciando a forma abençoada como o vovô desencarnou que passei a estudar a morte para melhor compreendê-la e ajudar as pessoas a não temê-la. Nas minhas experiências ao longo da vida, tive já oportunidade de conversar com muitas pessoas em estado terminal, umas aceitando a doença ou o acidente e a aproximação da hora do desencarne com serenidade, outras assustadas, intranqüilas, preocupadas com que lhes acontecerá em face dos dogmas religiosos apreendidos na educação que recebera em relação ao transcendental.

Há bem pouco tempo, vi, algumas vezes, em hospitais super equipados de aparelhos que objetivam prolongar a vida de pessoas portadoras de doenças que a medicina não cura mais por já estarem esgotados todos os seus recursos, o sofrimento do doente, a angústia dos familiares e o dilema dos médicos para abrir, ou não, mão dos recursos e deixar aquele ser simplesmente ir, descansar, parar de sofrer...


Li na Revista Veja do dia 28 de abril de 2010 a matéria intitulada “Ajuda para Morrer – A Ética na Vida e na Morte” onde se referindo ao novo Código de Ética que entrou em vigor em 2009, discute-se a redação dos seus Artigo 41 (e seu parágrafo único) e Artigo 42 e como “os médicos, pacientes e seus familiares enfrentam os excruciantes dilemas levantados pela possibilidade médica de prolongar ou abreviar a agonia de pacientes terminais” (copiado da Revista).
O ato do médico que, atendendo ao rogo do paciente e/ou de sua família, em vista da inutilidade dos tratamentos agressivos aplicados às vitimas de doenças irrecuperáveis e irreversíveis, modernamente denominado de “Ortotanásia”, não encontra, no Brasil, amparo legal, mas dificilmente um médico será punido criminalmente por este ato, nas condições citadas.

Foi após esta leitura que me lembrei da forma como morreu o meu avô; da minha mãe, que, atualmente conta 96 anos, completados em outubro de 2009, e está em gozo de excelente saúde. Fiquei pensando nestas outras pessoas, referidas na matéria, em algumas outras que conheço portadoras de doenças que talvez, um dia, cheguem a essa situação.

Ao longo de muitos anos de estudos e de aproximação com pesquisadores, como a Dra. Roseli Trigo – cuja tese de doutorado versou sobre Tanatologia; os conhecimentos que acumulei através de leituras, cursos, seminários, ainda não me permitem discernir se é melhor insistir nos cuidados paliativos ou se há validade no procedimento da Ortotanásia, se nós, seres humanos, temos mesmo esse direito de desistir da vida seja sob que condições forem.

Sinto que esta pesquisa solitária que faço não é a ideal, por não ter com quem discutir, analisar, ouvir criticas, colher impressões, conhecer outros pontos de vista. Às vezes até fico constrangida e levo na brincadeira quando meus amigos estranham esse interesse que tenho pelo tema da morte, de visitar cemitérios, de buscar literatura sobre o assunto. É difícil as pessoas entenderem um interesse desses

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